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ABRATI se posiciona sobre circuito fechado e é destaque no site CONJUR

O direito social ao transporte: verdades sobre o regime de fretamento, circuito fechado e concorrência.

 O transporte terrestre coletivo de passageiros foi elevado à condição de direito constitucional social e sua prestação foi concebida dentro de um sistema no qual  Estado e iniciativa privada atuam de forma cooperativa para garantir o acesso amplo e contínuo da população a esse serviço público essencial. Assim, embora titularizado pelo Estado, o serviço é oferecido por intermédio de empresas que atuam por delegação, exercendo a atividade em alinhamento com o interesse público.

O sistema de transporte coletivo rodoviário foi alicerçado sobre duas grandes modalidades: de um lado o chamado transporte regular de passageiros,  serviço público de transporte coletivo de passageiros prestado em regime de concessão, permissão ou autorização estatal; de outro lado, o transporte por fretamento, atividade econômica de transporte coletivo privado de passageiros para situações específicas, sempre sob a supervisão e regulação do Estado. Por se tratar de atividades distintas, seus objetivos, pressupostos e características não se confundem.

O transporte regular representa a concretização do direito social fundamental ao transporte e, enquanto serviço público, deve ser oferecido a toda sociedade de forma acessível e contínua, com satisfação de condições básicas de segurança e qualidade. Essa é a razão do estabelecimento de diversas exigências às prestadoras desse serviço essencial, como atendimento a rotas independentemente do número de passageiros, frequências mínimas, sem cancelamentos inesperados, além de rígidos requisitos a respeito das frotas e capacidade econômica das empresas de transporte.

Em decorrência do caráter social do transporte coletivo regular de passageiros, as empresas autorizadas à prestação do serviço têm a obrigação de observar gratuidades e descontos estabelecidos em lei para usuários como idosos, portadores de deficiência física e jovens de baixa renda, o que representa mais de 14 milhões de passageiros transportados com esses benefícios todos os anos.

Nesse contexto, o transporte por fretamento, como atividade econômica, possui caráter residual, com características específicas (contínua, eventual ou turística), absolutamente distintas do serviço regular. No fretamento a empresa é contratada para transportar um grupo determinado de pessoas, ligadas entre si por um motivador comum como, por exemplo, o transporte de funcionários de um local a outro, o traslado de um grupo pessoas para eventos ou, ainda, uma viagem turística em excursão.

A fim de salvaguardar a existência de um sistema público regular de transporte coletivo rodoviário de passageiros que atenda toda sociedade, especialmente as camadas mais necessitadas da população, a legislação e as normas regulatórias estabeleceram condições específicas para a oferta do transporte por fretamento, de modo que esta atividade econômica não se sobreponha ao serviço essencial e cumpra sua finalidade no contexto do sistema de transporte coletivo.

É por essa razão que, igualmente sujeita à supervisão regulatória do Estado, a operação do fretamento envolve requisitos e ônus consideravelmente mais brandos que aqueles exigidos no transporte regular. No fretamento não há regularidade, não há venda de passagens, não há obrigatoriedade de oferta de gratuidades e descontos a grupos hipossuficientes, além de não haver exigência de frota mínima e tampouco capital social mínimo por parte das empresas transportadoras.

Ao instituir as diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana, a Lei nº 12.587/2012 previu o fretamento como um serviço de transporte coletivo, não aberto ao público em geral, para viagens com características operacionais exclusivas, evidentemente distintas do serviço de transporte público coletivo. A mesma lei acometeu ao Poder Público competente a atribuição de disciplinar essas características operacionais e fiscalizar a adequada prestação dos serviços de transporte.

Considerando que Lei nº 10.233/2001 atribuiu à Agência Nacional de Transportes Terrestres – ANTT as atividades de autorização, regulação e fiscalização do transporte rodoviário coletivo de passageiros, autarquia editou a Resolução nº 4.777/2015, a fim de regulamentar a prestação dos serviços de transporte, especialmente para evitar que o prestador do serviço extrapole a autorização recebida para operação do transporte de passageiros, já que são absolutamente distintos os requisitos, pressupostos e objetivos do transporte regular e do fretamento.

Por se tratar, de acordo com a lei, de um serviço que não é aberto ao público em geral, servindo ao transporte de grupo específicos de pessoas em hipóteses especiais, a operação do fretamento foi prevista no chamado “circuito-fechado”. Trata-se de característica inerente ao próprio conceito da atividade de fretamento e, portanto, distintiva do serviço regular, que estabelece que a viagem do grupo de passageiros com motivação comum deve partir de um veículo fretado que, após percorrer seu itinerário e esgotar o tempo de permanência no destino, deve, o mesmo veículo, retornar à origem com o mesmo grupo de passageiros da partida.

O estabelecimento do circuito fechado é justamente a característica regulatória que viabiliza sua prestação em harmonia com a oferta do serviço público essencial de transporte coletivo regular de passageiros. Afinal, é a própria Constituição Federal quem prevê que o exercício de qualquer atividade a partir da livre iniciativa pode ser limitada nos termos da lei, especialmente quando necessária à preservação de um direito social.

A exploração do fretamento como atividade econômica, ainda que sob inovadora rotulação de “colaborativo”, e mediante utilização de ferramentas tecnológicas, não pode se afastar das balizas legais e regulatórias estabelecidas para o harmônico funcionamento do sistema de oferta de transporte coletivo de passageiros porquanto, acima do interesse econômico das prestadoras, está o interesse público de concretização de um direito social de estatura constitucional.

É importante, assim, voltarmos os olhos para algumas verdades sobre o assunto para que, a partir do que dispõe a Constituição Federal, a lei e os regulamentos do setor de transportes, sejam afastadas compreensões equivocadas a respeito das características e objetivos do fretamento, especialmente sobre o circuito fechado e concorrência.

O circuito fechado não retira do usuário o poder de escolha. O fretamento não foi concebido para operação com as mesmas características do serviço regular, muito embora empresas tenham adotado essa prática ilegal. Assim, dentro de sua finalidade específica, nas modalidades de fretamento contínuo, eventual ou turístico, o usuário tem a livre escolha da empresa que melhor atenda a sua expectativa, já que há segurança regulatória de preservação das características da operação de transporte.

O circuito fechado desempenha relevante papel regulatório. As características do fretamento foram estabelecidas pela própria lei instituidora das diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana, que expressamente previu tratar-se de um serviço não aberto ao público em geral, com notas operacionais exclusivas, a serem regulamentadas pelo Poder Público. A previsão do circuito fechado conforma o fretamento ao ser perfil legal e torna possível sua operação e fiscalização no contexto do sistema de transporte coletivo, do qual também faz parte o serviço público de transporte regular de passageiros.

O serviço regular garante a promoção do turismo e democratiza o acesso ao transporte.  O transporte coletivo regular de passageiros movimenta anualmente mais de duzentos e cinquenta milhões de passageiros e, por se tratar de um serviço público essencial, alcança usuários e destinos que jamais seriam economicamente atrativos para simples exploração do transporte enquanto mera atividade econômica. Por determinação legal e regulatória, há contínua oferta de um serviço de qualidade, com a garantia da adoção de práticas de segurança, de preservação dos direitos do usuário e do cumprimento de rotas e horários programados. O fretamento, em paralelo, atende demanda distinta e específica, de grupos fechados de pessoas, unidas pela motivação comum da viagem.

A operação do fretamento em circuito aberto desnatura sua finalidade e promove concorrência desleal e predatória com as empresas de transporte regular.  A atividade de fretamento com as mesmas características do transporte regular, operando em circuito aberto, traz inegável abalo ao sistema de transporte. A prática ilegal, atualmente adotada por empresas sob a disfarçada denominação de “fretamento colaborativo”, termina por colocar em concorrência desleal e direta empresas submetidas a regimes regulatórios assimétricos: enquanto as empresas regulares suportam diversos encargos exigidos para a prestação do serviço público essencial, as empresas de fretamento prestam, ao arrepio da lei e das normas regulatórias, o mesmo serviço para o mesmo público de usuários, mas sem se submeterem aos ônus que envolvem a delegação do transporte regular, vantagem indevida que lhes garante a possibilidade da prática de preços predatórios.

O Ministério da Economia nunca sugeriu o descumprimento de atos normativos legais e regulatórios sobre o circuito fechado. A Frente Intensiva de Avaliação Regulatória e Concorrencial (FIARC) do Ministério da Economia não contestou a validade e a eficácia das normas legais e regulatórias sobre o circuito fechado em estudo sobre o tema, ressalvando que sua manifestação se reveste de caráter opinativo e não vinculativo, além de não representar a posição de outros órgãos e autoridades.

A ANTT demonstrou a inviabilidade prática e regulatória de proposta do Ministério do Turismo a respeito da alteração do regime de operação do fretamento. Por meio da Nota Técnica n. 3497/2020/GEEST/SUPAS, a ANTT esclareceu que a função regulatória do circuito fechado é justamente evitar a indevida concorrência entre o serviço público regular e o transporte por fretamento, sob pena de conferir-se primazia à atividade econômica em detrimento da concretização do direito social ao transporte.

 Parece evidente que a oferta do transporte regular como serviço público essencial está vinculada à satisfação de um direito constitucional fundamental e, por isso, envolve deveres de universalidade, continuidade e regularidade e, por conseguinte, submete o prestador a diversos ônus estabelecidos em prestígio do interesse público. Portanto, o sistema de transporte coletivo de passageiros não se estabelece a partir de uma lógica essencialmente comercial, do transporte enquanto atividade econômica.

Ignorar as normas do setor e nomear o fretamento de “colaborativo” para admitir sua operação com as mesmas características do serviço de transporte regular, em circuito aberto, com regularidade e venda de passagens, representa não só a completa deturpação dessa atividade, mas a absoluta disrupção do sistema de transporte. Afinal, a indevida concorrência entre regimes regulatórios assimétricos para a prestação de um mesmo serviço resultará na fuga das empresas para o modelo menos gravoso, precarizando o transporte coletivo regular em prejuízo dos grupos de usuários mais necessitados.

A inovação e a tecnologia devem ser aliadas da concretização de direitos fundamentais, jamais um pressuposto para o seu desrespeito.

https://www.conjur.com.br/2022-nov-06/alde-santos-jr-direito-social-transporte

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